Existe uma quarta-feira do mês em que saio muito cedo de casa em direção ao PAC- Projeto Amigos da Criança, uma instituição que atende no contra turno escolar, crianças do bairro de Pirituba, zona norte de São Paulo. Esta é sempre uma quarta-feira especial para mim e sabe por quê? Porque vou dar aulas de videogames para crianças e adolescentes de 08 á 14 anos, que têm pouco, ou, quase nenhum acesso às novidades da indústria de games.
Na verdade, essas crianças não estão muito ligadas nos últimos lançamentos, elas jogam e vibram muito com os clássicos do PlayStation 1 e os jogos de celular gratuitos espalhados pelas lojas virtuais.
A felicidade que me toma às 8h30 da manhã quando a aula começa, não está ligada simplesmente ao fato de proporcionarmos o acesso de experiências de jogos bacanas para essa galera, mas, porque é alí vemos o quanto este trabalho que lutamos há tanto tempo faz sentido. É no PAC que estamos construindo a cada degrau, um espaço de conhecimento, autonomia e protagonismo.
Para inaugurar a sessão "Histórias", vamos contar a você sobre o último mês em que estivemos no PAC e, especialmente, sobre a reflexão de um guri que aqui chamaremos de "Edu", dividiu conosco.
Mas na vida real não dá né, tia?
Edu é da turma juvenil do período da tarde. Ele é um dos mais altos entre seus colegas de turma, e, por isso, é bastante respeitado pelos demais. Além, claro, de ser um líder nato nas ações e diálogos entre xs colegas.
Ao iniciar nossa oficina Edu é um dos primeiros a sentar no tatame azul, local em que nos concentramos antes da vivência com os jogos para conversarmos sobre os objetivos do dia e depois, para avaliarmos como nos saímos diante das dificuldades e possibilidades da experiência.
Edu foi logo solicitando o silêncio da turma, pois já sacou que "Quanto mais a gente fala, menos a gente joga!". Infelizmente temos apenas 50 minutos de oficina, o que é pouco para uma oficina realizada uma vez ao mês, mas é o suficiente pra que o Edu organize seus amigxs para o bate-papo inicial.
Então eu comecei:
- E ai galera, tudo beleza com vocês? Todxs sem demora respondem:
- Tudo beleza, Tainá! Eu sigo:
- Hoje a atividade não será uma competição pessoal, para desafiar seus limites e sua concentração, como no mês passado. Hoje vamos cooperar em grup..... antes mesmo que eu pudesse terminar a palavra, o Edu completa:
- Trabalhar em grupo!
- Isso! Tá ligeiro em Edu. Eu respondo e continuo.
- Vamos pensar juntxs, resolver problemas juntxs. Vocês já ouviram falar sobre jogos de puzzle? E eis que os rostos de estranhamento contorcem caretas dignas de uma foto.
- Já ouviram falar nessa palavra: PUZZLE? Cabeças em negativa balançam num coro.
- Pois sim, podemos falar que existem vários gêneros de jogos, certo? E que alguns gêneros se misturam em vários deles. Por exemplo... o que você estão jogando agora?
- Minecraft! GTA!. Sim, quase todxs elxs, não importa a idade, jogam GTA e adoram.
- Então, que gênero de jogo vocês acham que é ou tem no GTA- ação, adventure, RPG?
- Eu acho que é ação e corrida. Diz o Edu.
- Se liga, é RPG, meu. Fala um amigo no fundo da sala.
- Então, o GTA é uma mistura de vários gêneros. Mas é fato que não é um jogo de PUZZLE.
- E o que é esse puzzle então, tia? questiona uma guria.
- Puzzle são jogos de enigmas, quebra-cabeça(definição superficial), em que precisamos usar nosso raciocínio lógico para resolver problemas e poder seguir adiante com a personagem. E hoje nós vamos jogar apenas com um controle, que irá passar a cada 3 minutos de um jogador(a) para o outrx dentro dos dois grupos que irei formar. Nosso objetivo é trabalhar em grupo para resolver os pequenos problemas do caminho e chegar o mais longe possível com nossa personagem, ok?
Objetivos e comandos do controle explicados, grupos formados e a atividade se inicia. Edu fica feliz pois está junto de dois dos seus amigos. Acha que irá se dar bem com seu grupo e já anuncia vitória antecipada para o grupo alheio:
- Vamos chegar mais longêeeee!
O jogo é o Limbo, da desenvolvedora Playdead e, antes de começar todxs parecem aflitos com a arte misteriosa e o clima de suspense da primeira tela. Os primeiros problemas vão surgindo no jogo e ambos os grupos começam a complexa missão de trabalhar em grupo. O Edu já sacando como aquilo poderia ser, organiza seu grupo de modo que todos joguem auxiliando na resolução dos problemas. Eu fico na mediação dos grupos, pontuando o que deixaram ou não de observar, estimulando-xs no como pensar juntos, recheada é claro, de caras e bocas, como me é peculiar. Elxs riem muito das caretas quando percebem que elas indicam algo que ainda não viram e conseguem solucionar o problema. E este é o momento de êxtase do meu dia, pois elxs se dão conta de que efetivamente sabem e podem trabalhar em equipe.
Fim do tempo de jogo, todxs voltam ao tatame azul para a conversa final e avaliação dos objetivos. De fato o grupo do Edu muito bem organizado foi mais adiante com a personagem, e juntxs, os dois grupos pudemos verificar o que havia acontecido de positivo e negativo na vivência de cada um.
Pela primeira vez, depois de 5 meses, elxs tomaram consciência sobre as possibilidades que o jogo pode nos dar para refletirmos a vida, nossa atitudes e como podemos ser bons se trabalharmos juntxs. Edu disse:
- Aqui a gente pode errar e morrer várias vezes, mas na vida real não dá né, tia? E eu, com muito cuidado e certa angústia, para não ser pessimista ou otimista demais, respondi:
- É Edu, o jogo ensina pra gente a ser persistente. Na vida a gente erra bastante sim, afinal, ainda não dá pra morrer várias vezes...rsrsrs todxs riem. Mas é interessante pensar que juntxs vocês erraram e acertaram bastante também com um objetivo em comum, chegarem o mais longe possível juntxs. Então, parabéns pra todxs vocês hoje!
O dia termina e Edu e mais dois colegas desmontam os equipamentos comigo e me ajudam a levar até o carro. E no fim..
- Obrigada, gente! Eu agradeço.
- Tomara que o mês passe logo pra você voltar! Edu me emociona mais uma vez e dá-me um abraço de tchau.
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