Olá, tudo bem?
Enquanto protótipo de um novo trabalho de pesquisa, este alinhado ao Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, o #Diversitas, teremos algumas postagens que relacionam os jogos digitais com estudos do núcleo de pesquisa na Usp.
Iniciada no semestre passado através da incursão na região da Cracolândia, em São Paulo, continuamos a incursão neste semestre através de encontros na Usp.
Neste momento, acredito que as reflexões a partir da bibliografia do programa, de antemão, trazem pontos de vista bastante incomuns neste cenário. Ao pensarmos sobre questões sociais, necessidades e riscos iminentes, encontramos na atual tecnologia audiovisual um meio para a produção partilhada de conhecimento.
Produção que se faz cada vez mais necessária e urgente, pois...
"O poder fará tudo para que os livros continuem fechados."
A partir da obra "O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo", de Vladimir Safatle, iniciamos nosso caminho. Vamos lá?
Se não nos deixarem saber do que são feitas as salsichas, simplesmente vamos comê-las, e pronto. O mesmo parece funcionar com as leis. Certamente, quem as faz, ora quem as aplica, não está à sua margem, fazendo parte do mesmo corpo político dos camponeses. Todxs possuem ideologias; juízes e legislativo não seriam diferentes. Safatle vai ainda mais além:
"No lugar da lei, das normas e das regras havia, na verdade, um circuito de afetos". (SAFATLE, 2016)
Será que somos realmente isentos?
Produção de jogos e afeto
Através da leitura de Kafka, Safatle nos coloca que para compreender o poder, precisamos compreender os modos de construção dos corpos políticos, seus circuitos de afetos, os modelos de individualização e a forma com que isso nos afeta.
No campo do audiovisual, tenho um exemplo da casa para citar.
Em nossa produção audiovisual, A Nova Califórnia, o primeiro fato que nos chamou a atenção foi o próprio tema: a ganância. A forma com que Lima Barreto, autor do conto original, abordava a questão da ganância, também fora decisiva: humor e sarcasmo.
Enquanto corpo político construído de maneira semelhante ao contexto em que Lima Barreto viveu - no povo -, nos identificamos de imediato com a temática e, a partir disso, realizamos um trabalho de (re)construção da narrativa em um formato de audiovisual. Mais do que construir, sentimos que, na verdade, somos construídos por trabalhos como este. Veremos adiante!
Da mesma forma que Safatle nos coloca, acredito que precisamos partir da constatação de que...
"... sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos". (SAFALTE, 2016)
O afeto, quando não separado do trabalho e substituído pela frieza corporativa, nos traz acalento, representatividade e pertencimento. Percebo isto claramente no processo de desenvolvimento de jogo, ao qual realizamos, ora também no fazer artesanal das vivências mediadas através da Game e Arte.
Do medo ao desamparo
"Compreender sociedades como circuitos de afetos implicaria partir dos modos de gestão social do medo, partir de sua produção e circulação enquanto estratégia fundamental de aquiescência à norma" (SAFATLE, 2016).
Jornalismo policial
Medo de assaltos
Medo de morrer
Medo de machucar-se
Medo de perder
Ameaças. Ansiedade. Alerta
Tudoaomesmotempoagora
Desamparo.
A gestão social, segundo Safatle, é realizada através do medo. Compreender a sociedade como circuito de afetos, implica na estratégia de produção e circulação do medo. Esta é a forma encontrada pelo poder para fazer com que as pessoas sigam leis e normas.
Neste ponto, cabe colocarmos que o termo "circuito de afetos" não se encerra em sentimentos que consideramos "bons", como amizade, simpatia ou ternura.
Mãe Beth de Oxum, em uma oficina realizada no Sesc Ipiranga, em 2018, nos trouxe a oportunidade de conhecer sucintamente as práticas de seu terreiro. Em especial - muito especial -, uma das práticas no território é a produção de games.
Apresentado um exemplo de jogo que trazia em sua arte características dos povos africanos, Mãe Beth nos colocou:
"O problema é que todos esses jogos trazem a violência, uma pessoa batendo em outra pessoa". Para saber se podíamos colocar o jogador atirando em um pássaro, em nosso jogo, tivemos que perguntar a um Orixá".
Se o medo e o desamparo são utilizados como forças de dominação, ora não poderíamos nos ausentar da discussão. Enquanto audiovisual, os jogos digitais são um espaço tão poderoso quanto outras mídias, como o cinema. Neles, ideologias no formato de narrativas e jogabilidade se fazem presentes. É assim que grandes corporações e governos pensam: vide a indústria cultural do ocidente, em especial a Norte Americana, à qual dissemina suas ideologias à cada produção audiovisual.
Este é um dos motivos pelos quais a produção precisa ser descentralizada. Trabalhos como o "Contos de Ifá" mostram o quão é possível disseminar outros valores, utilizando-se do respeito e conhecimento, ao invés do medo e desamparo. Valores que, segundo a própria autora, passam a ser mais respeitados pela comunidade, inclusive de outras religiões que, muitas vezes, discriminam culturas com matrizes africanas. Não descentralizada no sentido de lutar-se contra o desamparo, mas utilizando-se como "dispositivo maior para um pensamento de transformação política" (SAFATLE, 2016).
Poder soberano e universo independente
Segundo estudos de Safatle sobre Freud, o poder soberano, instituído através da figura paterna, é algo que permanece em latência como demanda fantasmática dos indivíduos, mesmo quando a instituição política não está constituída.
No universo independente, encontramos alguns indícios para a superação de tal fantasia. Por um lado, o desenvolvimento de proposta orientadas ao mercado sugere a utilização de modelos mais tradicionais, com fórmulas bem aceitas pela comunidade. Estruturados desta maneira, tais propostas tem maiores chances de receber o aval do público, ora de investidores que irão expor a produção em larga escala.
Contudo, há atualmente um movimento independente - e que, inclusive, tem dificuldades em chamar-se de indie -, que busca superar tal dicotomia. O lugar soberano de poder não apetece, dando lugar à representatividade. É o caso de games com temáticas Lgbt, matrizes africanas, etc; os quais utilizam sistematicamente o meio audiovisual como um lugar de fala.
"O afeto que nos abre para os vínculos sociais é o desamparo" (SAFATLE, 2016).
Assim, à mercê do desamparo e de maneira muito prática, o desenvolvimento de games pode ser visto como resposta, como um trabalho que ampara. O outro, visto preferencialmente como concorrente pela sociedade, pode ser visto como parte essencial de uma comunidade plural e de produção partilhada de conhecimentos.
Além de reivindicar o seu local de fala, na maioria das vezes furtado pelo opressor, acredito também na esperança das pessoas em conseguir uma vida melhor através do trabalho. Não do trabalho como normalmente pensamos, mas dentro de processos mais próximos ao fazer criativo. Neste ponto, podemos aprender bastante com políticas públicas implementadas em cidades como Santa Rita do Sapucaí e que, através de sua utopia "Cidade Criativa, Cidade Feliz", tem apoiado o fazer artesanal que culmina em produções culturais de alto valor, tanto para quem consome, quanto para quem produz.
Na prática, cidades como Santa Rita do Sapucaí tentam amparar-se em uma lógica contrária à emergência do desamparo, sentimento utilizado, segundo Safatle, para governar.
"Sendo o estado nada mais que "a guerra civil constantemente impedida através de uma força insuperável", ele precisa provocar continuamente o sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência" (SAFATLE, 2016).
A espada que carrego, as trancas na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do meu próprio desejo. (SAFATLE, 2016).
Política do desamparo
Seria possível, dentro da leitura de Freud por Safatle, desenvolvermos formas de vínculos sociais não baseados no medo como afeto central?
Fazer circular a experiência do desamparo e sua violência, segundo a leitura de Safatle, seria um caminho. Ao invés de criarmos fantasias que nos defendam de tal afeto, como o porte de armas para "cidadãos de bem", a construção de muros nas fronteiras ou mais grades de condomínios, precisamos expor e pensar em ações políticas. Ações que não sejam "para os mais vulneráveis" ou, pior, contra eles.
Como justificativa para uma superação da fantasia da pureza, na qual o direito de alguns se sobressaem ao de outros, propomos a produção partilhada de conhecimentos e que, através do meio audiovisual, permite transformarmos tais ideias em ações concretas. Ações de reivindicação do lugar de fala. Ações que, mais à frente, podem também desdobrar-se como parte da estrutura fundamental de reconhecimento social, ora sem a dominação provocada pelas estruturas de mercado: o trabalho.
Para finalizar esta etapa, compartilho a imagem de um jogo criado na Oficina "Crie seu Game". Realizada em alguns lugares de São Paulo, a atividade buscou a criação audiovisual a partir de conhecimentos e situações vividas por todxs participantes. Atualmente, estamos reformulando a atividade. Se quiser saber mais, escreva-nos através de contato@gamearte.art.br.
Até breve e obrigado!
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